BIBLIBLOGUE ESJAC - TAVIRA

Blogue da Biblioteca da Escola Secundária do Agrupamento de Escolas Dr. Jorge Augusto Correia - Tavira. "LER É SONHAR PELA MÃO DE OUTREM." Fernando Pessoa (Bernardo Soares), Livro do Desassossego.

terça-feira, 2 de março de 2010

Uma leitura de «Gente Singular», de Manuel Teixeira Gomes

“ – Neste baú há mistério. Quem sabe se enquanto ele estava confiando à guarda desse macrocéfalo que diz, lhe não meteram dentro um morto ou…o que seria pior…um vivo…”“ – Foi (…) o malvado boticário que nos enganou… Nós para estrearmos dignamente a nossa retrete, que custou mais de trezentos mil réis, pusemos tártaro emético no café do Reverendo Padre e, ou porque fosse de mais ou não sabemos, o pobrezinho está muito mal…”



O conto “Gente Singular", incluído em colectânea a que deu título, saiu em 1909 e é sobremaneira representativo de uma obra que, como escreveu David Mourão-Ferreira, "pela subtilíssima dosagem de instinto e inteligência, de sensualismo e de humor, de plenitude física e de bom gosto cultural, não encontra paralelo em toda a literatura portuguesa". O seu autor é Manuel Teixeira Gomes.


O AUTOR
Manuel Teixeira-Gomes nasceu na Vila Nova de Portimão, em 27 de Maio de 1860, descendente de uma família algarvia de comerciantes de frutos secos, e apesar de uma existência dispersiva e cosmopolita sempre ao Algarve e à sua paisagem natural e humana se conservou fiel, dedicando-lhes as páginas mais vibrantes do seu incomparável estro literário. Acabou por morrer em Bougie, na Argélia, em 18 de Outubro de 1941. Porém, só em 1950 é que os seus restos mortais são enviados para Portugal.
Com a implantação da República foi diplomata em Londres e Madrid, depois Presidente da República entre 1923 e 1925. No ano seguinte, voluntariamente, exilou-se para sempre. Foi ainda Escritor, Politico e Comerciante.
Além de Gente Singular (1909), publicou ainda: Inventário de Junho (1899), Cartas sem Moral Nenhuma (1904), Agosto Azul (1904), Sabrina Freire (1905), Desenhos e Anedotas de João de Deus (1907), Cartas a Columbano (1932), Novelas Eróticas (1935), Regressos (1935), Miscelânea (1937), Maria Adelaide (1938) e Carnaval Literário (1938).
O CONTO
Ao associar o título Gente Singular à sua respectiva capa, posso afirmar que existe uma relação clara entre estes. Na capa observamos três figuras um pouco “estranhas” que nos fazem lembrar os eternos monstros que atormentam os mais graúdos. Antes de ler a obra, diria que esta nos conta a história de três seres inofensivos iguais a todos os outros (gente singular) mas que, por serem diferentes fisicamente, são rejeitados por todos os que convivem no mesmo meio que eles.

“ (…) quem nunca viu na rua ou na igreja esses monstros apocalípticos não poderá julgar da propriedade com que eu, para mais desprevenido, capitulei as três estranhas aparições de ursos com tromba de elefante.”ResumoPor motivos profissionais, Pedro Carneiro é forçado a mudar-se temporariamente para Faro. Como se não bastassem as circunstâncias desta migração involuntária, o protagonista vai ver-se envolvido em situações que intensificarão essencialmente a associação do Algarve a uma “terra hostil”. Se a viagem da sua terra natal até à capital algarvia é descrita como uma “calamitosa jornada”, devido às pouco desenvolvidas vias de comunicação norte-sul de que o país dos finais do século XIX dispunha, a verdade é que a estada do protagonista não será animadora o suficiente para compensar ou mesmo até fazer esquecer os sacrifícios da longa e interminável viagem.
À chegada à recomendada casa de Monsenhor Romualdo Simas e das suas três irmãs (Sebastiana, Prudência e Faustina), local onde ficaria hospedado apenas por uma noite, Pedro é confrontado com uma recepção estranha, caracterizada pela morte da mãe dos anfitriões. E é na cerimónia de vigília da defunta que o protagonista assiste aos primeiros indícios da insanidade do clã fraternal, começando pelo ritual bizarro das irmãs, que, disfarçadas com trombas de elefantes, pularam e gritaram em redor da mãe, numa tentativa de certificação do seu estado do cadáver, acabando com o carácter caprichoso e infantil de Monsenhor Simas que com orgulho mostrara ao seu hóspede o mecanismo que inventara para produzir o ruído da chuva, sem o qual nunca conseguia adormecer.
Depois de um período de afastamento, Pedro, como quem dá uma segunda oportunidade, começa a frequentar com mais assiduidade a casa de Monsenhor Simas e suas irmãs, por julgar que estes haviam amadurecido os seus comportamentos. Contudo, dias antes do regresso ao norte, decorrente da tão desejada transferência para Braga, vivencia, em casa dos irmãos, juntamente com vários convidados, alguns ilustres da classe eclesiástica, a inauguração de uma obra singular: E como se esta revelação não bastasse para surpreender aquele que relata o episódio e aquele que o lê, desvenda-se no final do conto que as manas, ciosas por uma estreia em grande da retrete, foram cúmplices do mau estar intestinal do pobre Reverendo Padre.

Apreciação crítica

Em Gente Singular, Manuel Teixeira Gomes, através de um estilo elegante e linguisticamente irrepreensível, concebe uma crítica nitidamente dirigida às atitudes, valores e modos de estar da sociedade burguesa e clerical algarvia da época em estudo. Por isso, esta obra fez-me reflectir sobre todas as atitudes, valores e modos de estar da sociedade burguesa do século XIX em Portugal. Como podemos ver, com a leitura da obra, há personagens portadores de uma personalidade de grande imaturidade, como é o caso de Monsenhor Simas. Outro tema que também ganha bastante importância é o modo como as estratégias que utilizavam para atingir os seus objectivos eram das mais surpreendentes possíveis, como aconteceu quando as três irmãs colocaram tártaro emético no café do Reverendo Padre para que este se sentisse indisposto.
Comparando o século XIX com o XXI, afirmo de bom grado que muita coisa mudou. No entanto, parece que muitas pessoas continuam a cometer acções de grande imaturidade e para conseguirem rasgar a meta passam por cima de quem for preciso. Parece que o famoso ditado popular “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” não se enquadra muito bem no tema, é verdade que os tempos se mudaram, já a mentalidade de algumas pessoas parece ter ficado congelada, intacta.

Bárbara Ferreira, 12º C1

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